quinta-feira, março 31, 2005

Matinal

Uma poalha d'ouro pela manhã - percebe-se mal se descerra a persiana - desfaz os sorrisos muito nublados.

quarta-feira, março 30, 2005

Caligrafar

Aspergir com tinta a folha; escrever com chuva o dia...

domingo, março 27, 2005

Circunferências

Nas cartas de marear, no esquisso arquitectónico, nas pautas de música, na simbologia maçónica, na tradição pascal - a ponta seca ou a tinta da China, jamais me entendi com o compasso.
Dificuldades com a circunferência...

sábado, março 26, 2005

Obsessões

Guarda-chuva fechado e lupa em riste, o daltónico procurava o arco-íris numa gota de chuva.

sexta-feira, março 25, 2005

Ventos

A brisa arrasta perfumes de dama, pétalas de jardim, folhas soltas. O furacão varre ideias, ícones, ilusões.
O tempo está ventoso!

quinta-feira, março 24, 2005

Ovologias

Alinhados em prateleiras, com cuidados de bibliófilo ou requintes de filatelista: o ovo miudinho da codorniz, o ovo enorme da avestruz, ovos pintados na tradição magiar, ovos moles da doçaria, o ovo síntese da escultura de Brancusi, ovos das antigas cosmogonias, o bergmaniano ovo da serpente.
E, também, ovos com coelhinhos...

quarta-feira, março 23, 2005

Canela

E se a Via Láctea, de súbito, fosse polvilhada de canela? Adoçava-se o sono, extirpavam-se os monstros infantis, retirava-se a palavra pesadelo dos dicionários?
Devia consultar um astrónomo-doceiro...

terça-feira, março 22, 2005

Equinócio

O equinócio de Março, ao enterrar o entrudo invernoso, venteia os pólens e erotiza as epidermes.

sábado, março 19, 2005

Minutos

Ao desembrulharmos uma viagem, num simples vaguear de passos, em acasos de fortuna ou azar, podemos rever rostos durante décadas cegos no quotidiano das pupilas. Enrugámos faces e prateámos fios de cabelo. Mas nada que se compare ao ritmo rimbaudiano: o poeta, em carta dirigida a sua mãe, dizia sentir-se bem, “mas embranquece-me um cabelo por minuto”...

quarta-feira, março 16, 2005

Régua

Entre o oito e o oitenta há o trinta e nove. E, no entanto, é tão difícil atingir o imaginário equilíbrio desse número como conseguir que algum antropólogo nos apresente o verdadeiro homem-padrão - de altura normal, com o bom senso comum e uma cultura média.

sexta-feira, março 11, 2005

Mini-Callas

“Uma fila de camelos, aparentemente sem condutor, atravessava a ponte, seguida pouco depois por uma carroça puxada por um burro transportando uma assembleia de carpideiras a caminho de um enterro, com as faces lutuosas pintadas de azul. De tempos a tempos, uma delas entregava-se a uma série de breves lamentações, tal qual uma cantora a exercitar a voz antes de entrar em cena.”
(Albert Cossery)

Dúvidas

J. S. Bach temperava o cravo com canela ou com paprika? E, atendendo ao gosto botânico dos melómanos da época, por que motivo nunca compôs sonatas para tulipa e violino?

quinta-feira, março 10, 2005

Securas

Tão gretada como um velho rosto enrugado, mais desesperada por bebida que a Parda vicentina, não consegue silabar, em lamúria moribunda ou revoltoso grito, a sua imensa sede.
A terra está seca!

quarta-feira, março 09, 2005

Diapasão

Qualquer murmúrio miudinho, se bem empurrado pelo vento das vozes, depressa se transforma em estrídulo clangor.

terça-feira, março 08, 2005

Estendal

“Sedas cintilantes das Índias, máquinas de costura do Japão, canetas americanas, tapetes persas, perfumes franceses, cigarros turcos, couros da Abissínia, véus de Cachemira, âmbar do Báltico, cutelaria da Suécia, conservas portuguesas... estão dispostos com grande cuidado nestas pequenas lojas onde não podemos manter-nos de pé e os obesos não são admitidos.”
(Philippe Soupault)

Veludos

Nas caligrafias esquecidas de noites ébrias, havia um gato negro, que jamais abandonava as casas de veludo, sempre a ronronar na epiderme de qualquer musa nórdica.
Lunática imaginação.

segunda-feira, março 07, 2005

Domingais

Um dinossauro de borracha esverdeada destronou os clássicos espantalhos de palha, um catraio que ajoelhou o riso parece rezar no meio das rosas, o jardineiro que trata o coração do pomar doméstico passeia entre as copas com gravata de missa.
Domingo d'absurdos!

sexta-feira, março 04, 2005

Fiat lux

Egos iluminados, estrelas da profissão, espíritos brilhantes... Tanto escritório que podia poupar em lâmpadas!

quinta-feira, março 03, 2005

Comas

"O vulcão que, nesse dia, estava de humor complacente, fumava tranquilamente o seu cachimbo [...]."
Théophile Gautier

Daltonismo

Quando nos confrontamos, numa esquina de cidade ou num beco de pensamento, com memórias tão antigas como retratos em sépia, parece que voltamos a galopar no pardo verde de um olhar sereno.

quarta-feira, março 02, 2005

Atmosferas

Nem este risonho sol gelado é capaz de fazer esquecer uma noite de lençóis solitários em que parecia mesmo que se estava a dormir num frigorífico.